
Cancro e diferenciação celular

Diferenciação celular
O que é?
A diferenciação celular é o processo biológico pelo qual células inicialmente indiferenciadas (células muito semelhantes entre si e à célula inicial que lhes deu origem) resultantes da divisão de uma célula fecundada (célula totipotente), como as células-tronco, se transformam em células especializadas, adquirindo características estruturais e funções distintas, como as células nervosas ou as células do osso, sem que o material genético(genoma) seja alterado. Este processo é exclusivo dos seres eucariontes multicelulares e é fundamental para o desenvolvimento, crescimento e funcionamento desses organismos.
Embora todas as células de um organismo multicelular possuam o mesmo genoma, ou seja, conservem o mesmo património genético independentemente do seu grau de diferenciação, apenas uma fração dos genes é expressa em cada tipo celular. Muitas das potencialidades genéticas das células diferenciadas encontram-se inibidas e nunca chegam a expressar-se. Assim, as características que um organismo expressa são muito menores do que as potencialidades genéticas que ele carrega, evidenciando que grande parte do património genético é destinada a regular o funcionamento de outros genes.
A diferenciação celular resulta da expressão diferenciada dos genes, cuja regulação pode ocorrer em várias etapas: por modificação da cromatina, no processamento do pré-mRNA em mRNA, na tradução do mRNA em proteínas e, ainda, após a tradução, mas é comum que ocorra durante a transcrição do DNA em pré-mRNA. Essa regulação depende das interações entre o DNA e o ambiente celular que caracteriza o contexto em que os genes se expressam. Por isso, o comportamento das células é influenciado tanto por fatores internos quanto por estímulos externos, como sinais químicos, físicos e interações com outras células. Estes fatores interagem com alguns genes, levando a que certos genes permaneçam ativos e que outros permaneçam bloqueados.
A capacidade que uma célula tem de originar outros tipos de células especializadas é tanto maior quanto menor for o seu grau de diferenciação. As células-tronco, por exemplo, possuem uma ampla capacidade de diferenciação, enquanto células altamente especializadas, como os neurónios, perdem essa capacidade.


O cancro
O que é o cancro?


Cancro ou neoplasia maligna é o termo utilizado para denominar um vasto conjunto de doenças caracterizadas por um crescimento anormal e descontrolado das células e que, na maioria das vezes, formam uma massa chamada tumor, e que reduzem ou perdem a capacidade de se diferenciar, em consequência do descontrolo de genes supressores tumorais da célula ou como resultado da presença de oncogenes. No entanto, alguns cancros, como os que ocorrem no sangue, não formam massas tumorais. O cancro é originado por mutações no seu DNA. Esta proliferação desordenada pode ocorrer em qualquer parte do corpo e é responsável pela formação de tumores, que podem ser benignos ou malignos.
Oncogenes são genes que, quando alterados ou ativados de forma anormal, têm o potencial de transformar uma célula normal em uma célula cancerígena. Normalmente, esses genes estão envolvidos no controlo do crescimento celular, da divisão celular e da sobrevivência celular. Porém, quando mutados, os oncogenes podem levar a uma proliferação descontrolada das células, característica dos tumores.
Genes supressores tumorais são genes normais que retardam a divisão celular, reparam erros do DNA ou indicam quando as células devem morrer (processo de apoptose ou morte celular programada). Quando os genes supressores tumorais não funcionam corretamente, as células podem se desenvolver fora de controlo, o que pode levar ao cancro. Um gene supressor tumoral normalmente impede que a célula divida-se rapidamente. Quando há algo de errado com o gene, como uma mutação, a divisão celular pode sair fora de controlo.
Embora o termo "tumor" seja frequentemente associado a cancro, nem todos os tumores são cancerígenos. Tumores malignos têm a capacidade de invadir tecidos adjacentes e espalharem-se para outras partes do organismo, formando metástases e causando danos em órgãos distantes. Este processo denomina-se metastização. Por outro lado, tumores benignos geralmente não apresentam esse comportamento invasivo.
O cancro é egoísta.
As células cancerígenas são "egoístas" porque, ao contrário das células normais, elas não seguem as regras de cooperação e equilíbrio que garantem a saúde do organismo, elas competem com as células normais. Enquanto as células saudáveis crescem, se dividem e morrem de maneira controlada, respeitando os outros tipos celulares e os limites do tecido em que estão inseridas, as células cancerígenas agem de maneira completamente desregulada. Elas se multiplicam de forma descontrolada, não respondem aos sinais que indicam quando devem parar de crescer ou quando devem morrer (apoptose) e, muitas vezes, invadem tecidos saudáveis ao redor, formando tumores. Além disso, essas células "roubam" nutrientes e oxigénio de células saudáveis, prejudicando o funcionamento adequado do organismo. As células tumorais precisam de um suprimento adequado de oxigénio e nutrientes para continuar a crescer e se multiplicar, Para isso, elas promovem a angiogénese, que consiste em criar novos vasos sanguíneos que alimentam o tumor. Esses novos vasos sanguíneos, no entanto, não são tão eficientes quanto os normais, frequentemente sendo tortuosos e com paredes mais frágeis, isso facilita a disseminação de células cancerígenas para outros órgãos (metástase), já que as células podem se desprender do tumor original e viajar pela corrente sanguínea, atingindo novas áreas que ainda não foram dominadas. A angiogénese, portanto, é um dos processos que permite que o cancro cresça e se espalhe. Essa falta de respeito pelo bem-estar das células vizinhas e pela harmonia do corpo é o que as torna "egoístas", já que buscam apenas sua própria sobrevivência e crescimento, sem considerar o impacto negativo que causam ao todo.
Além disso, pesquisadores descobriram que células cancerígenas podem "comer" células tumorais vizinhas para obter energia e sobreviver à quimioterapia. Esse comportamento ocorre em células senescentes (Células que cessam sua capacidade de se dividir, mas permanecem metabolicamente ativas), que entram em dormência após o tratamento, contribuindo para a recaída de tumores. O fenómeno foi observado no cancro da mama, pulmão e osso.
Esse comportamento, denominado entose, ocorre quando uma célula cancerígena engole outra célula viva (diferente da fagocitose porque ocorre entre células vivas, em vez de partículas ou células mortas). Essa prática não é apenas um ato de agressividade celular, mas uma forma de garantir energia e nutrientes essenciais para resistir a condições adversas, como a falta de oxigénio e a pressão de tratamentos quimioterápicos.
A quimioterapia, que visa eliminar células cancerígenas, frequentemente gera ambientes hostis que forçam as células malignas a buscar alternativas de sobrevivência. Através do canibalismo celular, elas conseguem recursos adicionais que permitem sua regeneração e até mesmo o desenvolvimento de resistência ao tratamento.
Esta descoberta ressalta como o cancro é uma doença multifacetada e adaptativa, exigindo esforços constantes da ciência para superá-lo.
Mas nem sempre as células cancerígenas são apenas egoístas. Em alguns casos, elas "reeducam" células vizinhas para criar um ambiente favorável ao seu crescimento e disseminação. No cancro do pâncreas, por exemplo, a molécula perlecan desempenha um papel crucial ao modificar o tecido ao redor do tumor. Isto facilita sua expansão e aumenta a resistência à quimioterapia. Os cientistas descobriram que, em camundongos, alguns tumores pancreáticos produzem uma quantidade acima do normal da molécula perlecan para remodelar seu ambiente. Ou seja, o que essas células cancerígenas fazem é "reeducar" as células vizinhas, espalham-se mais facilmente e ficam protegidas contra tratamentos quimioterápicos.

Tumor de mama formado em camundongos e tratado com doxorrubicina:

Tumor pancreático: ação decisiva da perlecan
O processo de desenvolvimento do cancro, envolve uma sequência de mutações no DNA, geralmente induzidas por fatores externos como radiação, substâncias químicas (como o tabaco) ou infeções. Essas mutações comprometem a capacidade das células de regular seu ciclo de vida, o que resulta em células que crescem sem controle e que não morrem quando deveriam.
A morte celular programada, conhecida como apoptose, é um mecanismo crucial para a manutenção da saúde do organismo, pois permite que células com erros genéticos como por exemplo, erros causados durante a replicação do DNA: falhas na correção de pequenas alterações na sequência do DNA podem levar a formação de células defeituosas; erros na síntese de pré-mRNA: A RNA polimerase, a enzima responsável pela transcrição, pode cometer erros ao copiar a sequência de DNA para pré-mRNA, levando a mutações no pré-mRNA, que podem afetar a síntese da proteína que será produzida; erros de processamento do pré-mRNA: Após a transcrição, o pré-mRNA precisa ser processado (com remoção de intrões e união de exões) antes de ser traduzido em proteína. Se houver falhas nesse processamento, o mRNA pode ser alterado, levando à produção de proteínas defeituosas. No entanto, no caso do cancro, as células tumorais se tornam resistentes ao processo de apoptose, o que contribui para a acumulação de células defeituosas e a formação de metástases.
A apoptose ocorre como um processo natural de autodestruição celular, essencial para a prevenção de doenças como o cancro. No entanto, células cancerígenas frequentemente adquirem mutações que inibem ou tornam ineficaz esse mecanismo, permitindo que essas células continuem a dividir-se e a espalhar-se. Esta falha no processo de apoptose é uma das características fundamentais do cancro e um dos motivos pelo qual ele se torna tão difícil de combater.
O sistema imunológico desempenha um papel importante na deteção e eliminação de células cancerígenas. No entanto, muitas células tumorais desenvolvem estratégias para escapar dessa vigilância imunológica, tornando ainda mais desafiador o tratamento do cancro.
Os antígenos são substâncias ou moléculas que podem ser reconhecidas pelo sistema imunológico como estranhas ou potencialmente prejudiciais ao organismo. Quando o sistema imunológico deteta um antígeno, ele inicia uma resposta para neutralizar ou eliminar a ameaça. Antígenos tumorais estão presentes em células cancerígenas e, em alguns casos, essas células podem alterar os antígenos que apresentam em sua superfície, evitando o reconhecimento do sistema imunológico. Isto ocorre por meio de mutações genéticas, o que permite que o tumor escape da vigilância imunológica. Além disso, as células do cancro podem diminuir a expressão de antígenos tumorais em sua superfície. Esses antígenos são normalmente reconhecidos pelas células do sistema imunológico, como os linfócitos T, que tentam destruir células anormais(células cancerígenas). Ao reduzir a quantidade de antígenos, o tumor dificulta a deteção pelas células T.
Os tumores malignos podem originar-se em diferentes tipos de células, levando à formação de diversos tipos de cancros, como carcinomas, leucemias, linfomas e sarcomas, dependendo da área afetada. Embora a medicina tenha feito grandes avanços no diagnóstico precoce e no tratamento de muitos tipos de cancro, a doença ainda representa uma das principais causas de morbidade e mortalidade no mundo. O aumento da esperança de vida e a deteção precoce têm contribuído para um maior número de sobreviventes, o que é um reflexo do progresso na ciência.
"O cancro rouba o corpo, mas jamais a coragem."
O cancro pode ser:
- melanomas, se a sua origem for em células que produzem a melanina;
- mielomas, se a sua origem for em células que produzem anticorpos;
- sarcomas, se tiver origem nos ossos ou em tecidos moles, como por exemplo, os músculos ou vasos sanguíneos;
- carcinomas, se as células forem epiteliais, ou seja, formam os tecidos básicos do corpo humano;
- leucemias, se tiver origem em células pertencentes a medula óssea;
- linfomas, se tiver origem em linfócitos.
O cancro não é exclusivo para os humanos.
Animais, desde cães e gatos até peixes e elefantes, podem desenvolver cancro. No entanto, os elefantes têm uma taxa muito baixa de cancro devido a uma abundância do gene P53, que repara o DNA danificado. Apesar de terem mais células do que os humanos, os elefantes raramente têm cancro. Os elefantes africanos têm cerca de 40 cópias do gene que codifica a proteína P53, que inibe a formação de tumores, enquanto os humanos possuem apenas duas cópias.
E como a diferenciação celular se relaciona com o cancro?
A diferenciação normalmente atua como um "freio" para a divisão celular. Uma célula que se diferencia para desempenhar uma função específica geralmente reduz sua taxa de proliferação. No cancro, mutações em genes que controlam a diferenciação (como os genes supressores tumorais ou oncogenes) podem levar a uma proliferação excessiva.
As etapas da diferenciação celular envolvidas na regulação da expressão diferenciada dos genes podem levar ao cancro:
- Modificação da Cromatina:
Alterações epigenéticas, como a hipermetilação do DNA, podem silenciar genes supressores tumorais, enquanto a hipometilação global pode ativar oncogenes. Modificações nas histonas, como acetilação ou desacetilação anormais, podem abrir ou fechar regiões do DNA, desregulando a expressão génica. Esses erros levam à ativação de genes que promovem a proliferação celular e à inativação de genes que controlam a diferenciação ou a morte celular programada.
- Processamento do pré-mRNA em mRNA:
Alterações no processamento alternativo podem produzir proteínas anómalas que favorecem o crescimento tumoral ou a resistência à apoptose.
- Tradução do mRNA em Proteínas:
Regulação desordenada da tradução pode aumentar a produção de proteínas oncogénicas. Alterações em fatores de tradução estão associadas à síntese excessiva de proteínas que promovem o cancro.
- Regulação Pós-Tradução:
Modificações anormais Pós-Tradução, como fosforilação inadequada, podem estabilizar proteínas oncogénicas ou impedir a degradação de proteínas mutantes e prejudiciais. O sistema celular pode ser desregulado, permitindo que proteínas que favorecem o crescimento tumoral acumulem-se.



"Terapia inédita usa o próprio metabolismo do cancro contra ele"
Um estudo inovador propõe uma abordagem terapêutica radical para o combate ao cancro: em vez de inibir o crescimento das células tumorais, a nova técnica busca estimular e sobrecarregar o metabolismo dessas células, levando-as à exaustão. A ideia baseia-se no facto de que as células cancerígenas possuem um metabolismo acelerado e consomem mais energia para sustentar sua rápida proliferação.
Ao estimular ainda mais essa atividade, o tratamento induz um estado de stresse metabólico intenso, fazendo com que as células tumorais entrem em colapso e morram. Essa abordagem pode evitar os mecanismos de resistência frequentemente observados em terapias que simplesmente bloqueiam o crescimento das células cancerígenas.
Vantagens Potenciais:
Evitar resistência tumoral: As células não têm chance de adaptação, pois colapsam devido à sobrecarga.
Terapia mais específica: Foca nas características únicas do metabolismo das células tumorais, preservando as células saudáveis. Ou seja, ataca as células cancerígenas sem afetar significativamente células saudáveis, que possuem um metabolismo mais estável.
Combinação com outros tratamentos: Pode ser usada em sinergia com quimioterapia ou imunoterapia.
Como Funciona?
Metabolismo Acelerado: Células cancerígenas possuem um metabolismo altamente ativo para sustentar sua rápida divisão e crescimento. Isso as torna mais vulneráveis ao stresse metabólico.
Estimulação Dirigida: A terapia utiliza agentes que intensificam processos metabólicos já exacerbados nas células tumorais. Isso provoca a produção excessiva de energia e subprodutos tóxicos, que as células não conseguem eliminar a tempo.
Colapso Celular: Incapazes de lidar com a sobrecarga, as células entram em um estado de stresse irreversível, resultando em apoptose (morte celular programada).
Se comprovada eficaz, essa terapia pode abrir caminhos para novos tratamentos personalizados que exploram as características metabólicas específicas de cada tumor. Além disso, pode oferecer uma alternativa para pacientes cujos tumores desenvolveram resistência a terapias tradicionais.
